Não sei vocês, mas eu não suporto ser tratado como idiota. Gosto muito dos textos da Allena e do Kuroi, pois eles ensinam como não ser tratado como idiota enquanto consumidor. Eu me considero, acima de consumidor, um leitor, ávido por boas histórias, bem contadas. Tanto que esta resenha (e todas as outras minhas à partir de agora) é voltada para aspectos narrativos do mangá, e não para características do produto lançado pela Editora JBC.
Fairy Tail, de Hiro Mashima, publicado na Weekly Shonen Magazinedesde 2006, é uma das mais recentes tentativas de fazer parte do cânon de grandes mangás shonen de aventura e luta. Um mangá de sucesso desse gênero geralmente precisa de três coisas: personagens carismáticos, ação envolvente e, se possível, comédia aqui e ali. Neste sentido, Fairy Tail é uma tentativa de sucesso: seus personagens, em sua maioria, são facilmente assimilados pelo leitor; o ritmo que o autor imprime à narrativa é bom, instigante; e Mashima é especialmente feliz nas suas tentativas de fazer rir. Mas sempre que eu tentei mergulhar na trama, me envolver com a história sendo contada, aparecia “algo” para me tirar de dentro, interrompendo uma experiência que vinha sendo, até então, prazerosa. E esse “algo” era meu cérebro.
Calma, eu chego lá.
Não há muito a se dizer quanto ao plot de Fairy Tail até este 3º volume; não acompanho por scanlators nem por fansubbers, não sei que caminhos tomará a trama daqui para frente, e até o momento só o que tivemos foram os velhos capítulos introdutórios, que testam o público, e fazem com que a série se estabeleça como fixa na sua publicação, para que o autor possa, então, aplicar a trama que deseja. Mas FT, como será chamado a partir de agora neste texto, nos apresenta Natsu e o gato Happy, dois “feiticeiros” da guilda conhecida como Fairy Tail, num mundo onde magia é algo comum, aceito e razoavelmente acessível a todos, em busca do “pai de criação” do garoto, o dragão Igneel.
Guildas são organizações que reúnem muitos feiticeiros, e funcionam como agências de emprego para os caçadores de recompensas mágicos. Lucy é uma feiticeira celestial (ela firma contratos com espíritos celestiais e os usa em diferentes tarefas) e sempre desejou entrar para a guilda Fairy Tail, até encontrar o jovem Natsu, conhecido como Salamandra por controlar (e comer) fogo, que a convida para seu bando e se torna automaticamente seu amigo. Os três primeiros volumes são focados nestas missões que a guilda agencia, e temos a introdução e conclusão de dois mini-arcos: o do livro Daybreak e o da Guilda das Trevas Eisenwald (aparentemente uma entre tantas “guildas das trevas”, guildas clandestinas sem autorização do Conselho – provavelmente serão o motor que irá mover a trama).
Temos um grupo interessante de personagens aqui; todos eles com a sua parcela de lugares-comuns, mas nada que chegue a incomodar (com exceções, que serão abordadas em instantes). Natsu tem o seu carisma; Lucy é a típica “personagem orelha”, que vem de fora e não conhece nada, servindo como representante do leitor para que conheçamos este mundo novo, mas mesmo assim tem personalidade própria e permite que nos identifiquemos com ela; Gray e Elza funcionam bem em ação; e até o inútil gatinho Happy chega a ser divertido. Mas, sinceramente (e aqui chegamos à exceção): quantos personagens do tipo “protagonista-bobalhão-e-comilão-PORÉM-badass-fodão-superpoderoso” nós precisamos? É um clichê tão batido (e tão específico, se você pensar bem)… o que os japoneses gostam tanto nesse tipo de personagem? É algum tipo de inocência perdida que eles buscam? É o “perseverar”, o “nunca desistir”, que os encanta? Não tenho nada contra esse valores, mas existem muitos outros modos de mostrar isso, ou mesmo debater até onde essa busca por um sonho é saudável (vide Griffith, de Berserk) sem cair nesses estereótipos repetitivos.
Mas Mashima, mesmo não sendo inovador em seus personagens ou em sua narrativa, sabe como usar muito bem os elementos já consagrados no gênero. FT é uma leitura fácil, gostosa, rápida; o autor sabe muito bem como apresentar as peças a serem movidas quando constrói um arco dramático, gerando tensão e expectativa, até chegar na parte que realmente interessa: a ação. E quando chegamos lá, a espera é recompensada com ação de qualidade, lutas muito bem desenhadas, claras, sem excessos e nem economias em demasia. Sempre temos vontade de ler a próxima fala, ver o próximo quadro, virar para a próxima página, comprar o próximo volume. Não espere achar aqui uma obra experimental, diferente; é mais do mesmo, mas é o que queremos. E bem feito. Mashima é um mangaká eficiente, e seu mangá funciona.
Funciona principalmente porque diverte sem compromissos, e boa parte da diversão vem do senso de humor bem empregado por parte do autor. Fazendo uso de cortes secos, comentários pontuais e até metalinguagem (como no capítulo extra da 3ª edição, ou quando Happy brinca com o espírito de Câncer, querendo que ele termine frases com “Kani”), FT acaba destacando-se mais pelo humor que pela história em si; o que não é ruim, de maneira alguma. O gato Happy encaixa-se especialmente bem nesta área: com sua expressão praticamente imutável, seus comentários acabam por parecer ainda mais diretos e até mesmo rudes, com ou sem intenção. É como se ele não tivesse freio social, não se importasse com a reação alheia. Esta parece ser a única função deste personagem até o momento, e mesmo assim é meio redundante, pois não dá pra dizer que ele é “alívio cômico” numa série onde todos os personagens são cômicos. Mas diverte, e é isso que importa. FT ainda tem o mérito de fazer humor sem exagerar em balões de fala de grito, aqueles pontiagudos. Quem lê quadrinhos há algum tempo acaba “sentindo” a intensidade das falas mesmo sem o som, e o humor japonês em quadrinhos tende a exagerar nos gritos, deixando tudo muito poluído; FT aposta em piadas ditas em tom baixo. Eu prefiro assim.
Vale a pena ler Fairy Tail? Sim, claro. E eu gostei bastante até; bem mais do que esperava de um shonen genérico. Mas boas leituras fazem você mergulhar no que está lendo, fazer parte da experiência. E Hiro Mashima insiste em tirar você da sua diversão, pois Fairy Tail é especializado em chamá-lo de burro.
Eu cheguei à conclusão de que eu não sou o público alvo do mangá. E nem você, leitor. Sabe por que? Porque temos um cérebro 100% funcional, e aprendemos a ler. Mashima parece escrever esperando que seu leitor não tenha um pingo de capacidade de retenção de informação ou interpretação de texto. Deve ser a razão para, por exemplo, termos de ver a Lucy, que faz parte do universo de FT, conversando com Natsu num bar, e parando (olhando para o leitor, quebrando a quarta parede) para explicar para o garoto, que também faz parte do universo de FT, o que é uma guilda. Mesmo sabendo que, até aquele momento, Lucy não sabe que ele é da Fairy Tail, ela sabe que ele vive nesse lugar, que lojas vendem artigos mágicos sem segredo, existem revistas especializadas em magia e feiticeiros, uma delas tem uma maga da própria Fairy Tail na capa, o cara na cena anterior se declarou feiticeiro em público, guildas fazem parte da configuração política deste mundo. Ele SABE o que é uma guilda. Ela não está falando com Natsu, está falando com o leitor. Isso se chama diálogo expositivo, e isso dói toda vez que é feito de forma tão deselegante. Mashima chega a fazer um quadro onde Lucy diz “Ah, e uma guilda é…”. Lamentável.
Logo depois somos apresentados à guilda e aos feiticeiros. A quem Mashima quer enganar? Eles são jovens, fortes, charmosos, bêbados, depravados, bocas-sujas, reúnem-se num bar, vivem brigando uns com os outros, e todos encaram suas explosões de violência com a maior naturalidade. Eles não são feiticeiros, eles são PIRATAS. Não bastando inspirar-se na arte de Eiichiro Oda (o que não é demérito), o autor ainda emprega o arquétipo clássico do pirata, coloca o nome “feiticeiro”, e espera que acreditemos? O que vem depois, alguém querendo nos convencer de que o Naruto é um ninja?
Na mesma sequência o mestre da guilda lista os crimes dos quais seus membros são acusados, mas diz que não se importa, pois foram feitos por causas nobres. Irresponsável, sim, mas esse não é o problema. O problema é introduzir seu discurso irresponsável explicando para os próprios feiticeiros como funciona a magia. Sim, aqueles mesmos, que são conhecidos por serem especialistas no assunto.
Na 2ª edição, depois de Natsu já ter enchido meio mundo de porrada, o Salamandra luta contra dois capangas do duque Everlue. O propósito dessa luta (além de ser a cena de ação do arco) é estabelecer o fato de que feiticeiros são fracos pois não treinam o corpo, e mostrar como Natsu é excepcionalmente forte para um mago, uma exceção. Isso não só é estúpido e desmentido pelo próprio mangá, como também é redundante. Todos os membros da Fairy Tail são fisicamente fortes, prontos para uma luta corpo-a-corpo. E nós já vimos, ao longo de toda a 1ª edição, que Natsu é um feiticeiro muito mais forte que o comum. Páginas e mais páginas de diálogo desperdiçadas dizendo o que já foi dito.
Mas repetir-se é especialidade de Mashima. Depois de já termos ouvido da boca de Erigor todos os detalhes do seu plano, somos obrigados a ver Elza, falando sozinha, repetindo para o vento (literalmente, neste caso) o mesmo plano. Sim, porque, em seguida, teríamos um plot twist, uma pequena reviravolta na trama, e o autor não confia na nossa capacidade de ligar os fatos e perceber que o jogo mudou. Ele precisa nos dizer. De novo. E de novo. E de novo.
Os exemplos são muitos (como a cena em que Mirajane desenha um maldito organograma no ar para nos explicar a “complicadíssima” hierarquia do conselho mágico), mas este texto já está extenso demais.
Como já foi dito anteriormente, Fairy Tail vale a pena. Eu consegui me divertir lendo, mesmo que, pontualmente, o mangá me deixasse profundamente irritado. Espero, do fundo do meu coração, que Hiro Mashima entenda, em algum momento, que nós já conhecemos este universo, que já nos familiarizamos, muito antes de seu mangá existir, com o conceito de magia, e que uma das melhores partes de ler quadrinhos é ter a liberdade de voltar algumas páginas e reler partes que possam ter sido esquecidas, eliminando a necessidade de nos explicar a mesma coisa quinze vezes.
Entenda, Mashima: seu mangá não é assim tão complicado. Mesmo porque, nós já o lemos há um bom tempo. Naquela época, em que ele se chamava One Piece.
Autor: Hiro Mashima
Preço: R$ 10,90
Formato: 13,5 cm X 20,5 cm
Páginas: aproximadamente 200 páginas
Indicação etária: maiores de 14 anos
Gênero: comédia, ação, aventura
Preço: R$ 10,90
Formato: 13,5 cm X 20,5 cm
Páginas: aproximadamente 200 páginas
Indicação etária: maiores de 14 anos
Gênero: comédia, ação, aventura
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